A farmacêutica Beo Oliveira Leite iniciou sua transição de gênero em 2019, aos 23 anos, vivendo em Vitória da Conquista, na Bahia. Beo começou seu processo de harmonização cruzada (terapia hormonal) antes mesmo de contar com acompanhamento médico, devido à dificuldade de acesso a ambulatórios.
Ela menciona que o ambulatório mais próximo ficava em Salvador, onde era possível acessar o Processo Transexualizador.
O programa que abrange um conjunto de procedimentos de saúde para pessoas trans, travestis e não binárias, foi instituído no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2008 pela Portaria nº 1.707 e ampliado em 2013 pela Portaria nº 2.803.
Como profissional da saúde, Beo relata que, embora tenha iniciado sua transição sozinha, procurou protocolos oficiais sobre hormonioterapia para minimizar riscos. O Conselho Federal de Medicina (CFM) permite a hormonioterapia a partir dos 16 anos, mas exige a presença de uma equipe médica composta por pediatra, psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico para menores de 18 anos.
Beo expressa frustração pela falta de um suporte adequado na época, mesmo ao acessar o SUS por meio dos ambulatórios transexualizadores, onde enfrentou um tratamento patologizante e a obrigatoriedade de um acompanhamento psiquiátrico prévio.
“Quando consegui acesso ao SUS por meio dos ambulatórios transexualizadores em Salvador, ainda fiquei frustrada pelo tratamento patologizante, necessitando de um acompanhamento psiquiátrico prévio”, complementa.
Recentemente, o CFM publicou a Resolução nº 2.427, que altera critérios para atendimento de pessoas com disforia de gênero, proibindo a terapia hormonal cruzada para menores de 18 anos. Apesar da aprovação unânime, as alterações enfrentam críticas de profissionais de saúde e ativistas dos direitos das populações trans.
Arrependimento e destransição
O conselheiro do CFM e relator da resolução, Raphael Câmara, justifica as mudanças com base em estudos sobre arrependimento e destransição, citando que países como Inglaterra e Suécia mudaram suas diretrizes. Além de proibir bloqueadores hormonais em crianças, a nova norma estabelece 18 anos como idade mínima para terapia hormonal cruzada.
Cirurgias de redesignação de gênero também estão vetadas para menores de 18 anos e para procedimentos que impliquem esterilização, este último para menores de 21 anos. O texto determina que pessoas trans e travestis devem ser supervisionadas por urologistas ou ginecologistas, conforme o sexo designado.
“Estamos fazendo isso para proteger crianças e adolescentes que, às vezes, em muito baixa idade estão sendo submetidos a procedimentos absolutamente terríveis”, disse Câmara à Agência Brasil.
Barreiras de acesso ao SUS
Beo Leite afirma que as novas regras impõem obstáculos ao acesso ao SUS para pessoas trans. Ela destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente garante autonomia aos jovens a partir de 12 anos em serviços de saúde, o que deveria incluir acompanhamento para necessidades não emergenciais.
“Procedimentos que não sejam de emergência, que sejam eletivos, de forma a serem acompanhados nos serviços de saúde e que não tragam nenhum tipo de risco à vida, são direitos dessas crianças e adolescentes”, continua a pesquisadora.
Ela reforça que a Política Nacional de Saúde LGBT, que garante acesso ao Processo Transexualizador, está sendo obstaculizada. Beo menciona os impactos negativos na saúde mental de crianças que não se identificam com seu sexo designado e que muitas vezes não têm apoio em casa ou na escola.
“Essa descoberta do ser uma pessoa trans ocorre justamente nessa faixa etária e precisa de um acompanhamento adequado, que geralmente não encontram na família ou na escola e que o serviço de saúde tem, por direito, que oferecer a essas crianças e adolescentes”.
A doutoranda alerta que muitos jovens já estão utilizando hormônios sem supervisão médica, já que a nova resolução dificulta o acesso a cuidados adequados.
Para Beo, o CFM age de forma desconectada do que se considera uma nova estratégia de cuidado no SUS, observando que evidências científicas apoiam a ampliação da faixa etária para hormonioterapia e cirurgias de afirmação de gênero. Ela ressalta que a adolescência é um período crítico, onde ocorrem altas taxas de depressão e tentativas de suicídio entre pessoas trans.
Retrocesso
Bruna Benevides, presidenta da Antra, critica a resolução do CFM, considerando-a um retrocesso no direito à saúde de pessoas trans e um fortalecimento de uma agenda institucional transexcludente.
“O que estamos vendo é a institucionalização da transfobia e da negação de um direito básico assegurado pela Constituição, que é o direito à saúde”, esclarece.
Ela observa que as argumentações que sustentam a resolução não são isentas de ideologias e menciona a trajetória do relator, Raphael Câmara, que tem um histórico ligado a uma agenda política conservadora.
Em abril, a Antra divulgou uma nota em repúdio às mudanças do CFM, que motivaram uma investigação pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre a legalidade da Resolução nº 2.427.
O MPF informa que o procedimento foi transformado em inquérito civil, que questiona o CFM e outros órgãos sobre o assunto.
Em abril, a Sociedade Brasileira de Pediatria também manifestou sua preocupação, solicitando a revogação da resolução, argumentando a favor do retorno à normativa anterior e pela proteção de pessoas com incongruência de gênero.
A especialista em Gênero e Sexualidade, Sara Wagner York, destaca a falta de escuta e compreensão das necessidades de crianças e adolescentes trans nas discussões políticas atuais.
“Fui uma criança e uma adolescente trans e, a todo tempo, essa discussão remete a todos os momentos em que não fui ouvida”, compartilha.
À Agência Brasil, Sara questiona a relevância da discussão se não considerarmos a identidade trans como um dos elementos centrais do debate.
*Estagiária sob supervisão de Gilberto Costa